Amar é Tratar Bem: Violência Doméstica - Se Assistir e Não Denunciar, é Cúmplice


Inês é minha prima desde que nasceu. Brincávamos sempre sozinhas, num vão de escada de acesso a um sótão, com bonecas magricelas que vestíamos com as obras de arte que Albertina costurava, tardes a fio, na bernina que hoje habita em minha casa, restaurada, polida, como que a desafiar a morte que lhe roubou a dona. Inês era uma rapariga ingénua, tal e qual eu, tal e qual as outras primas que surgiriam na família, até ao dia em que o pai, à sua frente, mata com dois tiros a sua mãe. Maria caiu no chão imóvel, para todo o sempre, e Inês, apesar de viva, caiu com ela. 

Foi nesse dia que eu soube que há pessoas que matam outras pessoas sem ser em guerras, e que a vida de quem perde assim outro alguém, muda para sempre, porque a perda vai muito além de uma mãe (como se fosse pouco perder uma mãe na metamorfose da adolescência). Inês perdeu a mãe, perdeu o pai, perdeu uma avó feliz e umas tias serenas. Perdeu a esperança no mundo, a tal que nenhuma pessoa deve perder, muito menos aos treze, muito menos nunca. Perdeu o local onde morava, perdeu a confiança na família, perdeu muitos colos, muitos sorrisos, muitos abraços e muitas histórias. Ganhou outras, demais para lhe caberem no peito, que rebenta ao pensar no que o pai, que a devia guardar, lhe arrancou das mãos num segundo (porque nem sempre quem nos devia proteger nos protege, nem sempre quem nos devia cuidar, nos cuida...)  

Dali em diante fiquei de olhos mais abertos. Descobri que ao meu redor moravam outras vítimas, menos violentas, ou talvez pouco menos, apenas porque não concretizaram e atravessaram o limite da morte. Moravam vítimas em casas conhecidas, em casas distantes, em casas que eu conhecia de cor e em histórias que eu escutava como se nada estivesse a ouvir, num fingimento que me valeu muitas verdades assustadoras: há inimigos que se desenham nas paredes de um quarto, se pincelam numa cadeira da cozinha, se erguem num momento após muitos sinais, que apesar de evidentes, nunca adivinham os dias do fim. 

A violência de um crime para quem a lê num jornal, é de uma atrocidade tremenda. Projectamos as nossas vidas, analisamos o perfil do agressor, especulamos o motivo, choramos a infelicidade da desgraça alheia. Longe, muito longe de quem vê ao perto os olhos de quem perdeu a vida como ela era, mas continua a viver, como alguém escolheu, na fúria do momento, na rapidez de um gatilho. Muito mais longe ainda, creio eu, de quem vive todos os dias sob o medo da morte. Talvez ainda tão longe de quem vive sem ele e o descobre, inesperadamente, numa hora qualquer, única, pessoal e intransmissível, sem direito a redenção. Não há respostas, nunca se sabe o porquê. Sabe-se que há sinais que não podemos, nunca, ignorar. 

Porque uma ofensa pode não ser uma ofensa, mas sim um início. Porque um estalo pode não ser um acto isolado, pode ser uma escalada para um local de onde não se poderá fugir, uma vez que as forças acabam, uma vez que o corpo mirra. Porque um empurrão pode não ser uma reacção, pode ser um caminho em trajecto rápido para um lugar sem vida, e já sem dor. 

Por isso, quando começa a doer, o único sinal que verdadeiramente nos alerta, deveremos sempre olhar com muito mais cuidado para nós. Olhar de frente, de cima, de longe, como se fôssemos um outro alguém e pudéssemos opinar a uma distância de segurança, quase quase imparcial. Ou de perto, muito perto, ainda mais dentro do nosso ser, a encarar os medos e tudo aquilo que queremos esconder, de nós próprios e do mundo. 

Se temos medo, significa que há perigo. Se estamos assustados, significa que há ameaça. E se há tudo isto, necessitamos de protecção. Sem vergonha, porque o erro não está nas emoções acanhadas de quem vive o horror. 

 Não me revejo, ainda não me revejo no discurso da igualdade, da evolução, da mudança, que urge tanto, quanto há tantos anos atrás. Enquanto não educarmos sempre pessoas, teremos para sempre atitudes animais. Enquanto focarmos as celebrações no exterior e esquecermos o interior, caminharemos sempre para lado nenhum. Enquanto a vida da família valer tanto como um nome ofensivo, que sai da boca com espinhos na direcção de um corpo resignado, teremos sempre desrespeito. Enquanto o valor da Mulher continuar a ser menor, e se vista apenas de flores e vaidade, não chegaremos ao nosso destino. 

O apelo vai longe, vai muito longe. Desde questões sociais e educacionais profundas, ao fim dos discursos extremistas, que em nada ajudam à diferença saudável que necessita de existir, para que um homem e uma mulher possam ser, em distinção e em igualdade. 

Se em tempos a cultura declarava a superioridade do homem em relação à mulher, ainda longe de ser superada, hoje em dia temos este e ainda outros problemas. Mantém-se muitas vezes dependência económica, facto de enorme relevância. Assistimos com frequência ao replicar de padrões comportamentais familiares: desrespeito gera desrespeito, grito gera grito, empurrão gera empurrão. Nos dias que correm, há uma desumanização que atinge os valores familiares. O que anteriormente se deixava contaminar pela rigidez da cultura, hoje adultera-se com as tecnologias, que nos roubam capacidades básicas de existência, de respeito e de interação. A nossa inteligência pode acompanhar, mas a nossa gestão emocional é sempre primária, dona de territórios perigosos, que necessitam de um adequado contacto social para se conseguirem regular. Se despersonalizarmos cada vez mais as relações e os contactos, menos clareza encontraremos na análise e nos direitos básicos da vida. Tão ou mais perigoso quanto a cultura, que ainda persiste, teimosa e intransigente, em condicionar-nos.  

A mudança começará sempre em nós. Não conseguiremos nunca mudar o mundo, somos insuficientes individualmente, mas se em redor de nós próprios quebrarmos ciclos, vamos ampliando a acção. E como os quebramos? Devagar, no que estiver ao nosso alcance, como por exemplo:

- A educar os nossos filhos homens e as nossas filhas mulheres, no direito e no respeito. 

- Ensinando que podemos dizer não e dizer sim, dependendo das nossas vontades, e que ninguém é obrigado a hierarquias instituídas seja por quem for. 

- Abrindo espaço ao diálogo sobre o nosso corpo e o corpo do outro, e ao que queremos ou não partilhar com alguém. 

- A defender que há realidades invioláveis e imperdoáveis, porque nos colocam num limiar demasiado perto de um perigo real. 

- A olhar de perto quem nos rodeia e evidência dificuldades. Uma pessoa agredida é uma pessoa ferida, fragiliza a alma e não só o corpo. A autonomia apregoada como suficiente para quebrar o crescente de violência, é tão frágil quanto as vontades internas, um dia sim, outro dia não, um dia nasce a coragem e a razão, no outro vence o medo e a culpa. São pessoas ocultas dentro de um véu interno, mais forte do que uma prisão. Que as guarda delas próprias e do mundo, sendo que a sua existência passa a ser inválida, mecanizada, superficial, tal a dor que encaram quando se encontram de frente. 

O nosso papel de sociedade, é talvez dos mais fundamentais neste problema abrangente e persistente. Na mudança e na sinalização de quem, por incapacidade, insiste em esconder. Enquanto nada alterar, enquanto o mundo não receber a mudança, o véu é para levantar, e o grito é para soltar. Antes, muito antes dos dias do fim.

 

O marido da Maria matou-a com dois tiros, era a frase da minha mãe, repetida à exaustão da loucura. A minha Maria, a minha Maria, gritava ela, com as mãos na cabeça. E eu olhava, incrédula, ainda sem saber bem o que seria aquilo. Aquilo era a morte. Hoje eu já sei, que aquilo era a morte. Gritada fora de horas, poucos segundos depois. 

quarta, 26 de junho de 19