O amor nos tempos de um vírus


O mundo como ele era, deixou de ser um lugar comum. Num ápice e sem precedentes, as inversões galoparam atingindo indústria, sociedade, economia, saúde, famílias e afetos. 

A dificuldade de passar incólume a este fenómeno deixou de existir, pela franca impossibilidade, resta-nos o movimento da adaptação à adversidade, encarando-a como um desconhecido
que teremos de aprender e aceitar, por tempo indeterminado. A exigência será de vários tamanhos, associada ao repto de cada um de nós. Se há quem de forma franca e aberta, se consegue adaptar com dores menores, há também quem acuse cansaço extremo, desânimo, impaciência e medo, muito medo. 

O medo é um dos motores do mundo, há quem assim o defina e não se engana. Rege a morte, rege a vida, rege os nossos objectivos e a capacidade de evoluir em diversas direcções. Associa-se a escolhas, percursos, manipulações, amores e desamores, construções internas e religiosas, dogmas e convicções. O medo em massa domina, sendo, o mais perigoso de todos os medos, o que aniquila a nossa capacidade de impulsão, esperança, perspectiva de continuidade, vingando sobre os alicerces que a sociedade detinha como paredes mestras da sua obra. 

A família, espreita-se à distância do olhar, escuta-se ao telefone, acena-se ao de longe. Os amigos são o espelho que se quer claro, mas cuja nitidez se esfumaça pela dificuldade da partilha e do abraço, valha-nos a saudade e a vontade de recuperar tudo outra vez. 

Os jovens, fiéis depositários da força, escondem-se onde podem, encostados como nunca, a redes que nem sempre são tão sociais quanto a sua designação e como gostaríamos que fossem, mas que no momento presente parecem salvar a adolescência de um naufrágio colectivo. 

As crianças, vidas em projecto, esculpem- se ao sabor da adultez assustada e impaciente, prontas a travar a mais dura batalha das suas vidas: aprender a falar, a socializar e a crescer sobre a pressão de um bicho papão, muito pior do que o que morava nas histórias do antigamente. 

Cansei-me de olhar para dentro e de procurar uma resposta que me descanse o suficiente, para o que vivemos. Dei voltas ao dicionário da vida e das minhas aprendizagens, às leituras dos sábios e dos comuns dos mortais, analisei políticas de acção e esbarrei sempre nas minhas maiores dúvidas, nas grandes questões: não tenho reticências sobre a capacidade de adaptação do ser humano, que vencerá esta batalha como na história venceu todas as outras. Não sou derrotista no sentido de encontrar a desgoverno a cada canto, estimo a nossa resiliência, creio na nossa inteligência, confio no amor e no afecto. Mas como processar tudo, sem que o dano se afigure por demais danoso, e comprometa a nossa sanidade mental (aquela que parece esquecida num momento em que o que importa é respirar, muito mais do que sentir)? 

Talvez a melhor resposta seja mesmo o amor, a realidade antagónica ao egoísmo que impera as ditaduras da ordem, o único lugar do mundo onde o outro importa mais do que o próprio. Não me parece um sonho, parece-me a mais pura das realidades, a mais forte das armas, a mais óbvia das salvações e a necessidade do momento. 

Escuto-o muito pouco nos tempos de antena. O que comanda a vida deixou de ser o sonho, para passar a ser um resumo factual e desastroso, traduzido em números assustadores que colaboram com o medo. Os telejornais vestem-se de fato e gravata para anunciar em peso a fragilidade do mundo, para darem tempo de antena aos líderes insanos que debitam palavras de escárnio em chorrilhos desorientados, para especularem ainda mais ao redor das mentes inquietas e sedentas de segurança. Mas ao invés de serenarem, ao invés de usarem o poder da palavra para atenuar a dor, espicaçam cada vez mais a dúvida, procuram desesperadamente questões impossíveis, orientam-se no que pode ameaçar e não no que pode esclarecer. De amor, nunca mais ninguém falou. Desapareceram ou camuflaram-se as palavras de esperança, esconderam os técnicos de saúde mental, os pensadores, os escritores. 

Procuremos o melhor caminho nos nossos recursos, nas redes de afeto, de família, de amigos, redes de verdadeiro apreço. Procuremos nos livros, no conhecimento, na natureza, para contemplar e agradecer. Na pureza dos animais, nos filhos para os vermos crescer, no mar para escutar, num próximo que pode precisar da nossa ajuda. 

Foquemo-nos no outro, o bem afigura- se nos dias de hoje mais necessário do que nunca, pela paz que nos poderá proporcionar. O mundo continua a ser muito belo, na simplicidade de um aconchego, na libertação de uma lágrima, num entardecer. 

A realidade não mente, necessitamos de a olhar de frente. A conjuntura empurra- nos para a perda, para a doença, exige que consigamos gerir as nossas emoções com a confiança de um credo que nos devolva a vitória, da nossa liberdade. 

Um dia um padre disse-me que impelisse a minha própria canoa, sem me esquecer das pessoas. Disse-mo, no átrio de uma igreja, à frente de todos os santos. Disse- mo sem a pretensão do dogma, ofereceu- me esta verdade absoluta com a bênção da Santíssima Trindade, padroeira da terra que me viu nascer e crescer. Olhei-o desconfiada e pouco capaz na altura de o perceber: o que estaria ele a dizer? ... minha força e a minha liberdade, sem me esquecer dos outros? Agora percebo, falava-me de amor. 

A única salvação, sempre, mas mais do que nunca quando o mundo atravessa uma guerra que nos empurra insistentemente para a distância, que só venceremos com a libertação do afecto, das emoções, da amizade e da proximidade.

 

Carla Ferreira, Diretora de Recursos Humanos

terça, 16 de fevereiro de 21