Se não for urgente não vá às urgências


Demora mais tempo e corre o risco de ficar mais doente.

Uma consulta aos dados disponíveis no portal da transparência do SNS (Serviço Nacional de Saúde), no primeiro trimestre de 2019 relativa aos números das urgências por triagem que indica o grau de prioridade clínica, mostra que quase 600 mil dos 1,6 milhões de atendimentos receberam pulseira verde, azul (20 mil) ou branca (41 mil), sendo considerados pouco ou não urgentes, o que representa cerca de 40% do total de atendimentos.
A atribuição do verde e do azul significa que os utentes poderiam ser encaminhados para outros serviços de saúde, como os cuidados de saúde primários. A pulseira branca significa casos de doentes recebidos por razões administrativas ou casos clínicos específicos referenciados por um médico, mas sem situação aguda. As pulseiras amarelas são as mais comuns, com mais
de 670 mil casos atendidos, ainda assim, menos do que o somatório dos casos de pulseira azul, verde e branca. Registaram-se ainda, quase 160 mil casos muitos urgentes, com pulseira laranja, e mais de 5.600 considerados emergentes, com pulseira vermelha. Os serviços de urgência dos hospitais são as principais portas de entrada dos utentes no Serviço Nacional de Saúde, havendo uma afluência crescente na procura de cuidados conjugada com um aumento do grau de exigência e deste modo, os serviços de urgência e os profissionais desta área enfrentam desafios crescentes associados ao aumento do número de admissões, à incapacidadede flexibilizar as respostas e à diminuição dos recursos hospitalares associados a infraestruturas antigas, não projetadas para abarcar com as necessidades atuais. 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) defende que a saúde é um direito fundamental de todo o ser humano e que o acesso aos cuidados de saúde deve ser garantido pelo governo de cada país. As políticas, estratégias e programas de saúde devem seguir uma abordagem do direito à saúde centrada: na disponibilidade de serviços; na acessibilidade: não discriminação, acessibilidade física, acessibilidade económica e acessibilidade à informação; na aceitabilidade  o Serviço Nacional de Saúde é extremamente importante na resposta aos problemas de saúde da população em geral nomeadamente no que diz respeito a cuidados de saúde não programados e na qualidade, o que deve englobar cuidados seguros, eficazes, centrados nas pessoas, atempados, equitativos, integrados e eficientes (OMS,2017). O Serviço Nacional de Saúde é extremamente importante na resposta aos problemas de saúde da população em geral nomeadamente no que diz respeito a cuidados de saúde não programados. Cada indivíduo pode optar por recorrer, a cuidados de saúde primários ou serviços de urgência hospitalar, mediante a necessidade e gravidade do seu estado de saúde. 

Contudo, o que se tem verificado, é uma procura inadequada dos serviços de urgência, uma vez que muitos pacientes se dirigem
a este serviço em condições de saúde não urgentes/emergentes. No caso de Portugal há uma forte afluência a estes serviços principalmente no período de gripes. Esta procura desajustada sobrecarrega os serviços de urgência, conduzindo a uma diminuição da qualidade dos cuidados com tempos de espera acima do normal e consequente aumento dos custos. 

Mas afinal o que é uma urgência, uma emergência e situações agudas ou agudizadas que não implicam intervenção corretiva
em um curto espaço de tempo? Torna-se necessário definir estes termos. É considerada urgência a situação clínica súbita, que pode ser pouco ou muito grave, em que existe risco de falência de funções vitais. Emergência é uma situação clínica súbita em que podem estar comprometidas uma ou mais funções vitais. Todas as outras situações agudas em que os cuidados de saúde primários (centros de saúde) podem e devem dar resposta, são aquelas
que embora não representem urgência ou emergência, carecem de uma rápida resposta dado o seu aparecimento recente. Os serviços de urgência visam o atendimento e tratamento de situações urgentes/emergentes, sendo da competência dos Cuidados de Saúde Primários garantir a existência e implementação de mecanismos de atendimento não programado e de rápida resposta, permitindo a promoção de uma acessibilidade adequada e eficaz ao atendimento de situações agudas não urgentes. 

 

Porque motivo os utentes se dirigirem aos serviços de urgência em detrimento da procura de cuidados de saúde na unidade funcional onde possuem inscrição? 

Acessibilidade? Ausência de resposta nos Cuidados de Saúde primários? Uma ideia de maior rapidez no atendimento? Percepção incorreta da gravidade da condição do seu estado de saúde? Indo ao Serviço de urgência conseguem num único ponto de acesso um conjunto variado de serviços de cuidados de saúde?Ou têm uma incorreta avaliação/percepção dos cuidados de saúde prestados por cada tipo de serviço de saúde? 

Vários estudos realizados ao longo do tempo suportam todas estas hipóteses do senso comum.Palma (2002) pretendia averiguar onde recorriam os utentes quando se confrontavam com problemas de saúde urgentes, concluindo que o motivo mais vezes referido era o facto do doente pensar que as urgências hospitalares eram o local mais adequado para uma rápida resolução do seu problema, sendo que o facto de não conseguirem obter consultaurgente, no espaço de um dia junto do seu médico de família, levava a que recorressem às urgências hospitalares. 

Também o número de admissões está diretamente relacionado com o
envelhecimento, as dificuldades económicas da população, o aumento das doenças crónicas, a dificuldade em aceder aos Cuidados de Saúde Primários e outros serviços da comunidade. Também se verifica que os médicos de clínica geral e familiar referenciam para os Serviços de Urgência pelos mais diversos motivos, incluindo escassez de profissionais, conveniência por prestar cuidados fora de horas, relutância para tratar de casos complexos, preocupações com a responsabilidade e a necessidade de exames complementares de diagnóstico. 

A grande preocupação é que este “mau uso”, como referido anteriormente, acarreta custos e diminui a eficácia da resposta àqueles que mais precisam. 

Períodos de sobrelotação estão associados ao aumento da mortalidade, períodos de permanência prolongados e elevados custos para doentes internados correlacionado ao risco de contágio de infeções hospitalares por agentes multi-resistentes. 

A sobrelotação pode conduzir a uma prestação de cuidados “a despachar”, aumentando a probabilidade de falhas no diagnóstico ou tratamento, conduzindo a complicações, ou mesmo incapacidade e morte. No entanto,
há estudos que demonstram que doentes que recorrem ao serviço de urgência, em condições explicitamente mais severas, são menos afetados pelos atrasos na prestação de cuidados, gerados pela sobrelotação. 

Uma situação realmente emergente não padece de atrasos. 

Períodos de sobrelotação estão associados ao aumento da mortalidade, períodos de permanência prolongados e elevados custos para doentes internados correlacionado ao risco de contágio de infeções hospitalares por agentes multi-resistentes. 

A superlotação acarreta também riscos para o doente, que vão desde a falta de privacidade e confidencialidade, à redução da qualidade dos cuidados com atraso no acesso aos mesmos e falta de 

tempo para a participação na tomada de decisão para os tratamentos prescritos. 

Mas as consequências desta sobrelotação por procura incorreta de cuidados nos Serviços de Urgência, não são só para os utentes enquanto utilizadores, mas também para os profissionais. Cada vez mais se fala de burnout, aumento das situações de doença, frustração, insatisfação, depressão e dificuldade em recrutar e manter profissionais para estes serviços e violência física e moral para com estes. 

Além dos utentes e dos profissionais também as instituições se ressentem com estas problemáticas, pois a sua fama e rankings de qualidade ficam aquém do esperado.A tudo isto juntamos a falta de profissionais nos mais diversos setores da saúde, assim como material e meios complementares de diagnóstico e terapêutica ultrapassados ou até mesmo em falta. Todos os ingredientes necessários para uma mistura explosiva! 

E Soluções? 

O setor da Saúde é sempre um dos focos centrais das discussões orçamentais, pelo peso que representa para as contas públicas e pela inquestionável importância que tem para todos os cidadãos. Os Hospitais são cada vez mais forçados a praticar uma gestão eficiente dos seus recursos mas a implementação de estratégias em prol da sustentabilidade do sistema não se pode focar apenas na contenção de custos. 

Cada vez mais se aposta na articulação entre os hospitais e os cuidados de saúde primários, e esta deve centrar-se essencialmente no cidadão. Quando as respostas não são efetivas e a coordenação entre os diversos serviços de saúde é fraca ou ausente, a pressão nos serviços de urgência vai obrigatoriamente aumentar. 

Idealmente deveriam ser dirigidos esforços para a construção de um sistema de gestão de utentes que permitisse a atribuição de médico de família a todos os cidadãos e que promovesse o acesso adequado aos cuidados de saúde primários. Os sistemas de informação em saúde deviam ser objeto de melhoria constante de forma a prevenir desperdícios em saúde, capazes de promover uma melhor prática clínica e troca de informação entre os diversos profissionais de saúde. Os centros de saúde poderiam ser dotados de alguns exames complementares de diagnóstico e terapêutica. 

A abordagem e análise às admissões hospitalares no serviço de urgência deveria ser efetuada por todos os ACES (agrupamentos centros de saúde) em articulação com os seus hospitais de referência de forma periódica, sinalizando utentes recorrentes no serviço de urgência e promovendo o seu reencaminhamento para os cuidados de saúde primários e ainda identificar limitações nas respostas das unidades de saúde possibilitando a definição de estratégias para uma melhoria das mesmas. 

Como já referido, a população é cada vez mais idosa e em simultâneo há um
aumento de doenças crónicas e patologias/complicações associadas, motivo pelo qual o acompanhamento a estes utentes tem de ser cada vez mais efetivo dado que a necessidade de procura de cuidados de saúde é cada vez mais frequente, através de um reforço em unidades de cuidados continuados, paliativos, lares, serviços domiciliários, apoios económicos e sociais aos cuidadores... 

Finalmente e talvez a mais importante, e que depende somente de todos nós cidadãos, é a própria capacitação dos utentes do serviço nacional de saúde, através de campanhas de informação que mostrem como utilizar corretamente um serviço de urgência, promovendo uma responsabilização destes para uma correta utilização dos serviços de saúde, sendo planeados potenciais incentivos a quem efetivamente recorre a cuidados programados e penalizações aos que recorrem inadequadamente aos serviços de urgência. 


Sónia Coelho - Enfermeira CHL - H. Alcobaça; Serviço de urgência CMPataias

segunda, 25 de maio de 20